“Que criança boazinha, quase não chora!”, “Parabéns, ele é tão comportado!”, “Nossa, tão quietinha sua filha, que linda!”. Você já ouviu essas frases antes? Quem tem filhos sabe que um dos maiores desafios é a cobrança das pessoas – de amigos a familiares – sobre o comportamento das crianças. A infância é o espaço em que o indivíduo se encontra em seu estado mais entregue à imaginação, à criatividade e ao desejo de explorar o mundo. Ainda assim, vivemos em uma sociedade que espera que os pequenos cumpram normas sociais e sejam como miniadultos: silenciosos e “educados”. O importante, afinal, em uma sociedade que invisibiliza a infância, é que a criança não “dê trabalho”.

No entanto, estar dentro de uma “caixa”, de uma expectativa social, pode afastar o indivíduo da busca por quem ele é, bem como de uma experiência plena de infância. Esse é um dos questionamentos que o livro Konrad – O menino da lata, de Christine Nostlinger, levanta. A obra, que faz parte da seleção de setembro do Clube Quindim, conta a história de Dona Bartolotti, uma mulher que tem manias curiosas, como comprar tudo o que vê na televisão. Um dia, entre as encomendas que recebe pelo correio, chega à sua casa o menino Konrad, dentro de uma lata, fabricado para ser a criança perfeita.

Como uma “criança boazinha”, Konrad é extremamente educado e obediente, mas o convívio com sua mãe e uma garotinha mais livre, vai colocá-lo diante da importância da autenticidade. Sair das caixas em que nos colocam e das expectativas sociais que esperam de nós desde o nascimento parece ser o único caminho para viver mais perto de nossas verdades e realizações pessoais.

Expectativa sobre a infância: o buraco é mais embaixo

Há uma ideia que vem de religiões cristãs e do espírito colonizador de “civilidade”. Ela segmenta os povos entre os selvagens e os civilizados, e cabe a estes segundos espalhar sua cultura e iluminar o primeiro grupo. Dentro das famílias, essa maneira maniqueísta de compartimentar comportamentos se repete: o adulto é o iluminado que deve civilizar a criança – assim, a criança boa e comportada é aquela que verdadeiramente acessou os ensinamentos do adulto.

Por outro lado, temos a cobrança que recai sobre os pais – e mais fortemente sobre a mãe – de que consigam completar essa tarefa de iluminar seus filhos. Em um mundo competitivo, a performance e a “vitória” são valores ensinados e estimulados: assim, espera-se que, por trás da criança boazinha, haja a “mãe competente”, aquela que soube ensinar seu filho direitinho como se comportar, aquela que “doma” a criança. Se, por outro lado, a mãe não cumprir essa missão certamente será julgada.

Comparação do parquinho

A dinâmica de parquinho infantil é toda especial. Com frequência as mães comparam seus filhos e suas performances como “mães competentes”. Se há uma criança que grita, que corre mais, que não consegue emprestar seus brinquedos ou chora, há um julgamento instantâneo de que aquela não é a criança boazinha, e que portanto sua mãe não deve ter lhe ensinado corretamente como proceder. Muitas vezes ouvimos até relatos de mães e crianças que são excluídos por não terem o comportamento ideal – deixam de ser convidados para eventos, por exemplo, porque a criança “não sabe se comportar”.

Há, dessa forma, um vício muito grande de controle e repressão, eco da educação destinada pelos pais nas gerações anteriores, bem como uma intolerância às características da criança, de quem está tentando entender a si, às emoções, ao sentimento de frustração e ao funcionamento do mundo.

Muitos adultos também não evitam mencionar o que pensam sobre as crianças diante delas. Assim, afirmam: “Ele é tão tímido!”, “Nossa, como ela é sensível!”, “Esse é bagunceiro”, “Essa é tão delicada” – rotulam os pequenos, predeterminando quem são e serão e limitando suas experiências emocionais.

A questão de rotular os pequenos é ainda mais importante quando se pensa em questões de gênero: de acordo com dados do documentário “Repense o elogio”, de Estela Renner, dentre os entrevistados e entrevistadas,  80% dos termos ditos a meninas eram relacionados à sua aparência, como “linda” e “princesa”, enquanto 70% dos elogios aos meninos estavam relacionados a habilidades, tal qual “inteligente” e “forte”. Conclusão: aí se planta a semente das opressões de padrão de beleza que as mulheres carregam, assim como dos valores de masculinidade que pressionam os homens.

Uma das melhores formas de lidar com essa questão talvez seja pensar em nossa própria vivência como adultos. Sabemos que não somos uma coisa só, estamos longe de conseguir nos encaixar em uma caixa, e que os percalços da vida nos transformam constantemente, fazendo com que entendamos e reinventemos quem somos a todo momento. Diante das crianças, que possamos acolher sua inteireza e sua complexidade, base fundamental para que aproveitem a infância com a liberdade que precisam e que possam desenvolver quem são com amor e verdade.


Conheça a obra Konrad, o menino da lata

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Escritora: Christine Nöstlinger
Ilustrações: Annette Swoloda
Editora: Biruta

Dona Bartolotti vivia uma vida tranquila tecendo tapetes, comprando coisas pelo correio e saindo com o namorado duas vezes por semana. Um dia o carteiro traz uma lata e de dentro dela sai um filho. E a partir daí nascem uma mãe, um pai e uma família. E a história de Konrad, um menino fabricado que chega literalmente enlatado. Ao longo da narrativa, o filho “fabricado” é desconstruído e a ideia de perfeição é desmistificada. Afinal, o que é ser perfeito? E essa ideia de perfeição veio de onde? Os pais sempre têm expectativas a respeito dos filhos, mas as experiências que vão na contra-mão dessas expectativas são muito importantes para o processo de autoconhecimento, quando se busca entender a diferença entre quem você é e quem esperam que você seja. E os pais são companheiros importantes nessa jornada, ouvindo, conversando e acolhendo.

A história de Konrad acontece no mundo real, com personagens bizarros porém reais e em que a ideia de um menino fabricado é aceitável. Mas sua origem, criação e personalidade não correspondem à lógica da realidade e este é ponto de partida para os conflitos e para muitas situações engraçadas durante a narrativa. Muitas vezes, os personagens que estão em contato com Konrad precisam achar desculpas para situações desagradáveis, que fora do livro poderiam ser consideradas “malucas”. Mas a autora faz isso de maneira tão hábil que mergulhamos na história.