O tempo de ouvir, o tempo de ler, o tempo de contar nossas histórias

Quando eu era pequena, minha avó, mãe de minha mãe, sentava ao meu lado para ensinar o tricô. Minha avó contava os pontos. Laçadas. Tranças. Dizia: “é matemática pura!”. Contava que ela mesma tinha feito casaquinho e manta para me vestir bebê. Eu enchia os ouvidos dela com as minhas perguntas. Ela não perdia o ritmo, alfinete, linha, agulha, tec tec tec, entre as histórias também vinha uma canção da casinha com varanda na beira da praia: só vendo que beleza. Minha avó se chamava Laura, como as folhas de louro. O nome dela era um presente para desejar boa sorte.

Cresci perto de meu avô. Ele veio para o Brasil por causa de uma ditadura. Saiu de lá com seis filhos e ainda teve uma última aqui, brasileirinha. Meu avô era um homem de aldeia, arado, enxada, semente. Tinha jeito com as plantas. Um dia  eu perguntei: “avô, porque não plantamos flores nos canteiros?”; ele só repetia “flores não se comem, flores não se comem”. Depois ele virou pescador. Suas mãos eram magras e fortes, sua disposição para fazer e fazer e fazer. Além do mais, o avô tinha força na palavra, e o mesmo sotaque que eu escutava timidamente cantar na boca do meu pai. O nome de meu avô era Valentim, uma dádiva de bravura.

Minha mãe era brasileira, meu pai é português. Fui batizada com nome de rainha, Penélope, história de espera antiga, lá de antes da Grécia. Meu pai não queria esse nome, mas achou bonito porque foi minha mãe quem tinha escolhido. Cresci ouvindo as histórias daquela Penélope distante de mim e perdida numa história de mil fios. Os fios que minha avó tricotava enquanto meu avô, este mineiro, aumentava o volume do rádio para escutar a tristeza do Jeca.

Não tínhamos muitos livros para crianças quando eu era pequena. Minha família não lia livros. Eram todos trabalhadores braçais, feirantes, tricoteiras, caminhoneiros, agricultores… No entanto, todos eles me contavam histórias e ouviam com muita atenção o que eu tinha a dizer.

Hoje eu não tenho mais meus avós, faz imensa falta o cheiro do feijão na panela de minha avó, eu poderia comer sardinhas fritas na manhã de domingo, e nem minha mãe pode mais me telefonar para dizer que me ama. Todos eles me enchem de saudades. Acho injusto, inclusive, porque eu continuo tendo um monte de perguntas para fazer sobre as nossas histórias. O tempo passa depressa.

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Penélope com seu pai, em sua infância marcada por histórias orais contadas pela família

Revisito minhas memórias para contar… A história da história é o encontro, uma trama que se tece aproximando nossa ancestralidade com os dias de hoje, numa composição múltipla que traduz nossas vidas. Cada palavra é um pequeno fio de linha, um botão, um elemento preciso. Quem ama sua história reconhece o peso de cada palavra dita, ouvida, guardada.

Crescer numa família que conta histórias não nos torna leitores de livros, mas faz com que possamos ler o mundo e suas gentes, vozes, formas, cores, movimentos. As histórias podem desenvolver em nós a sensibilidade para enxergar a narrativa de todo ser vivo e sua composição com o todo do qual também fazemos parte.

Mas é essencial não esquecer: o tempo é ágil e as histórias são muitas. Precisamos aproveitar cada segundo cultuando a experiência de trocar boa palavra por palavra de bem querer.


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Penélope Martins, escritora e narradora de histórias, pensa a história com desdobramentos para melhorar a vida cotidiana, transcendendo a obra para um fazer coletivo de leitores, uma possibilidade de reunirmo-nos com nossas memórias e características culturais para prática de empatia. Entre seus livros publicados estão A incrível história do menino que não queria cortar o cabelo, pela Editora Folia das Letras; Poemas do jardim, pela Editora Cortez, Quintalzinho, pela Editora Bolacha Maria; Princesa de Coiatimbora, pela Editora Dimensão; e Que amores de sons, pela Editora do Brasil.





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